OS GLORIOSOS MALUCOS DO SUPERMERCADO
O casal diverte-se a entrar nos estabelecimentos e a olhar para os preços. Aqueles dois vão ao super ou à praça como quem vai ao S. Jorge ver o Woody Allen, dá-lhes um gozo danado. Conversam e riem com as latas de atum branco («tadinha, ainda a quarenta e dois...»)fazem festas ao rosbife («já estás um homem a duzentos e setenta!») e só no corredor das loiças se comportam com algum respeito («sed lex, pirex!»). Clientes oculares afirmam ter visto o casal a provocar uma lata de feijão branco («a vinte e seis escudos? cresce e aparece!»)desaparecendo depois para os lados do balcão do peixe.
O próprio pessoal começa a afinar com aquilo.
- A com'e que está o carapau?
- A cento e vinte.
- Não tem mais caro?
- Hããã!?
- Dava-me jeito, não tenho trocado. Além disso é para uma pessoa amiga que faz anos, queria oferecer-lhe uma coisa boa...
É assim uma espécie de humor negro retinto, neo-masoquismo, ausência total e completa das realidades, o que se quiser.
Gerentes de várias lojas trazem-nos debaixo d'olho, e já pensaram chamar a polícia: os preços merecem apreço respeito e consideração!
O casal passa-se para outra zona.
- Olha-me para esta frigideira em puro aço inoxidável! Quinhentos mél reis. Está tudo ao desbarato!
- Tens razão, até dá pena comprar. Pode haver alguém mais necessitado...
Por esta altura, já uma fila indiana que persegue os dois malucos, marido e mulher, pelas diversas fronteiras do super (desde a raia dos enchidos à do spirela, já está) e que só os há-de largar em terra de ninguém, na paragem do eléctrico.
Entretanto, a fita continua.
- E estes copos a oitenta e cinco, tão pequeninos e frágeis, a pedir protecção, levamo-los?
- Não filha, sabes bem que não temos quintal.
O gerente também se mete na bicha, ele quer ouvir tudo. A sua dúvida é se chama a autoridade ou o 115. Uma coisa é certa, não gosta que o tomem por lorpa, e há gozo na costa.
O casalinho prossegue com os seus comentários confusionistas, em voz alta «gosto muito de vir a este super», e ela «são gente honesta e conscienciosa», e ele, «vendem tudo ao preço antigo», e ela, «chegam a perder dinheiro», e ele, «uma pessoa sente-se comovida», e ela, «é de partir o coração». Encostam a cabeça um no outro e fazem a rábula do pranto.
Passam pelo corredor que dá para os legumes («fruta, só tomate, querida») e alcançam os enlatados para animais domésticos. Ele fala de homem para lata com a comida de cão («a quarenta e três? Grrrr! Ão, Ão!») enquanto ela assanha a comida de gato.
Dali para as coisas de plástico.
- Os sacos do lixo eram a vinte e seis, lembras-te? Deram um saltinho para trinta e nove e setenta...
- Com'e que os comerciantes podem sobreviver?
(Os dois, em coro:)
- Tadinhos...
Muitas cabeças (barrigas e pés) de casal seguem atentamente aqueles dois até à porta, com uma curiosidade de cortar à faca. Pelo caminho, ele ainda embirra com uma latinha de grão indefesa, a vinte e seis e trinta («mostra-me o bico, mostra...») mas a lata nicles, nem uma nem duas.
Já dentro do [i]amarelo[/i] (a fita do costume, «sete e quinhentos? Tão barato, com'e que a Carris se aguenta?»)ainda ouvem o gerente, enfim, desabafar: «Isto cheira-me a esturro».
E gritam-lhe em andamento:
- É dos preços, amigo! Estão a arder...
(Crónica descoberta num recorte de jornal - provavelmente o 'Diário de Lisboa' - impossível de datar...mas experimentem substituir valores e tocar escudos por euros...)